quinta-feira, 1 de abril de 2010

13 - O 25 de Abril, todos os dias



Para ser absolutamente sincero – e não faz sentido que dialoguemos com o leitor a não ser numa base de absoluta sinceridade – começo a ficar farto desta comemoração de apenas um dia, e ainda mais farto dos pedidos que me fazem para escrever um textozito a propósito. Para o 1º de Dezembro, ninguém me pede nada; o mesmo para o 5 de Outubro, e até para o 1.º de Maio. Mas quando se aproxima o 25 de Abril, é um autêntico corrupio! Então este ano – talvez porque 30 anos já conferem ao aniversário a respeitabilidade suficiente – tenho vindo a receber as solicitações mais diversificadas. Até me telefonou um velho amigo da Coimbra dos anos sessenta, que andou pelo MDP/CDE nos meses solares da revolução, e que eu já não vejo vai para quase 30 anos, e que, soube-o agora por ele, dirige uma folha de província na Beira Alta, na órbita financeira dos caciques democratas do PSD. "Escreve-me qualquer merda, pá, tu nem escreves mal, e a gente pode nem concordar com vocês, mas vocês, comunistas, têm do 25 de Abril uma experiência que mais ninguém tem". Bem tentei escapar-me, que ando muito ocupado com a profissão, que ele corria o risco de os amigos não virem a gostar do que eu escrevesse, mas ele nada, não se comoveu, e até perorou qualquer coisa sobre a evolução, e sobre cartazes, e sobre a democracia, e eu, coitado de mim, não fui capaz ou não tive coragem para lhe dizer que não. Lá lhe mandei o texto, tarde e a más horas, com a esperança difusa de assim lhe fornecer o pretexto para que não fosse publicado...
Mas verdadeiramente inesperado foi pegar no meu telemóvel, interromper aquele toque de chamada musical e parolo que nunca entendi como me caiu em sorte, e ouvir do outro lado "Estou a falar do «Mensageiro dos Pobres». O Doutor está?". O "Doutor" a que o «Mensageiro dos Pobres» se queria referir era certamente eu, e nada melhor do que este tratamento para ouvirmos com alguma atenção o que os outros têm para nos dizer. Mas que raio seria o «Mensageiro dos Pobres»?.. Cheirava a coisa antiga, por um lado, e, por outro, parecia-me contraditoriamente sofisticado que os pobres utilizassem um qualquer Mercúrio alado para fazerem ouvir os seus queixumes.
Com tudo isto, seguiu-se um longo silêncio depois do "O Doutor está?". Pelo que o outro lado se viu na obrigação de continuar: "Lembras-te" - passou do "Doutor" para o "tu"... - "lembras-te dos tempos da JEC?". (A JEC, ensino eu aos católicos e ateus incultos de hoje, era a Juventude Escolar Católica, por onde andei no então Liceu Nacional de Angra do Heroísmo). E o outro lado não parava: "Agora sou pároco aqui em (...), sei que foste Deputado do PCP na Assembleia da República, quero que me escrevas umas linhas sobre o 25 de Abril para o nosso jornalzinho, o «Mensageiro dos Pobres», ou tu julgas que os padres são todos uns reaccionários?.., eu sei que continuas no PC e és um tipo aberto, manda-me lá qualquer coisa, olha que tem de ser curto, se não o povo não lê, e manda-me isso já, toma lá nota do endereço: (...). Recebe um grande abraço, a gente depois volta a falar... E antes que desligue: lembras-te de quando a PIDE andou atrás de ti e eu te encafuei na casa paroquial?.. Foi de mestre!". E desligou. O que é mais engraçado nisto tudo é que lá lhe enviei o texto – "umas linhas", como ele me pedira – para o endereço que passei para o gravador do telemóvel, e ainda hoje não sei exactamente com quem falei. (Tenho dois ou três nomes hipotéticos na cabeça, mas prometi a mim mesmo que, se ele voltar a telefonar-me para o 31º aniversário, hei-de arrancar-lhe ao menos o nome. Já tenho projecto de vida com que me ocupar durante um ano).
O 25 de Abril, como vocês estão a ver, é verdadeiramente uma data mágica. Mágica – mas não o bastante. Porque não me telefonam apenas a pedir-me textos. O António ligou-me, como o faz sempre nesta época, desde há 30 anos... O tom da voz é cada vez mais empastado e há palavras que tenho ano a ano mais dificuldade em perceber. Fala-me mais com silêncios arrastados, guturalizados de quando em vez com restos de gritos que ele próprio já não ouve. Disse-me, desta vez (ou sou eu quem inventa o que ele me quer dizer...): "Vem aí o dia da libertação, camarada. Tu, eu, o Xico, o Zeca Beirolas e o outro-António, o alferes, lembras-te dele? temos de combinar beber umas cervejolas. No dia 24 acertamos, 'tá bem?". Já sei que, tal como nos 30 anos anteriores, eu e o António não nos vamos poder encontrar com os outros. O Xico, o Zeca Beirolas e o outro-António, o alferes, morreram na guerra em Moçambique, não houve para eles qualquer data libertadora. O meu amigo, este António que quase não consegue falar-me, é um sortudo, e a realidade há muito que já lhe não diz nada. O 25 de Abril é mágico – mas não o suficiente.
José Fernando Araújo Calçada
2004
(em “30 ANOS DE ABRIL, 30 TEXTOS”, Ed. FÓRUM)

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